2 Filmes de Ficção Científica que Brilhantemente Subvertem o Machismo do Gênero

2 Filmes de Ficção Científica que Brilhantemente Subvertem o Machismo do Gênero

A Ficção Científica ocupa há décadas um lugar de destaque na cultura pop, seja através de filmes, livros ou séries de TV. Porém, apesar de abordar universos fantásticos e possibilidades tecnológicas arrojadas, muitas dessas produções ainda reproduzem visões extremamente limitadas sobre as mulheres. Por que um gênero tão aberto à imaginação e à criação de realidades alternativas costuma perpetuar estereótipos machistas? E, mais importante, como algumas obras conseguem subverter esse cenário? Neste artigo, examinaremos duas produções que se destacam justamente por trazer papéis femininos fortes e bem trabalhados: eXistenZ (1999), de David Cronenberg, e Blade Runner 2049 (2017), de Denis Villeneuve.

Por que a Ficção Científica costuma ser tão machista?

A história da Ficção Científica está marcada por tramas que ignoram completamente as mulheres ou as colocam em papéis secundários. Em muitos filmes clássicos, elas aparecem apenas como musas inspiradoras, secretárias, esposas devotadas ou donzelas em perigo. Estudos mostram que, nos primórdios do cinema sci-fi, as personagens femininas:

  • Raramente apareciam ou tinham papel relevante (ausentes ou meras coadjuvantes).
  • Serviam de apoio aos protagonistas masculinos, reforçando a “grande jornada do herói”.
  • Eram submissas a estereótipos de mãe, esposa ou objeto sexual.

Essa forma de representação limitante atravessou gerações. Em lugar de criar universos realmente inovadores, a indústria simplesmente replicava hierarquias patriarcais, mesmo dispondo de total liberdade criativa para imaginar novos mundos. Ainda assim, alguns diretores e roteiristas começaram a questionar esse modelo. É nesse contexto que surgem obras como eXistenZ e Blade Runner 2049, que trazem reflexões importantes sobre o papel das mulheres na Ficção Científica.

eXistenZ: invertendo papéis de gênero na Ficção Científica

eXistenZ
eXistenZ

No filme eXistenZ, de David Cronenberg, vemos uma protagonista feminina, Allegra Geller, que subverte o tradicional estereótipo da “assistente passiva”. Em vez de apoiar um gênio homem, ela própria é a grande mente por trás de uma tecnologia revolucionária: um jogo de realidade virtual que se conecta diretamente ao corpo humano por meio de um “bio-port”. Ted Pikul, o personagem masculino que a acompanha, assume o papel geralmente reservado às mulheres: é inseguro, cheio de temores e desempenha a função de “coadjuvante” que segue a protagonista.

Cronenberg aborda, de forma simbólica, questões sobre fertilidade, sexualidade e poder. A protagonista chama seu jogo de “meu bebê”, indicando como a capacidade de criação feminina não se limita ao ato de ser mãe no sentido convencional, mas também à produção de ideias e tecnologias. A inversão de papéis se revela especialmente marcante quando Ted demonstra medo de ser “penetrado” pelo bio-port, refletindo a ansiedade tipicamente masculina em perder o controle. Ao dar a Allegra o poder de conduzir essa interação, o longa retrata a mulher no centro de um novo tipo de protagonismo, confrontando a visão tradicional de que o homem é o único sujeito ativo da relação.

Blade Runner 2049: mulheres no centro do enredo

Blade Runner 2049
Blade Runner 2049

Blade Runner 2049, de Denis Villeneuve, também explora personagens femininas fortes e multifacetadas em um universo distópico. Embora o protagonismo aparente recaia sobre o oficial K (Ryan Gosling), diversas figuras femininas moldam a narrativa de forma decisiva. O enredo gira em torno da busca pela “filha milagrosa” de Rachael, a replicante que, no filme original (1982), era vista principalmente como um objeto de desejo e fetiche. Aqui, a possibilidade de uma replicante engravidar se torna um símbolo de poder e liberdade, algo que o vilão Niander Wallace anseia controlar a qualquer custo.

De maneira crítica, Villeneuve utiliza arquétipos femininos para questionar a forma como a Ficção Científica costuma retratar as mulheres. Personagens como a tenente Joshi (durona e estrategista), Luv (braço direito do vilão, mas que carrega sua própria complexidade emocional) e Dr. Ana Steline (a verdadeira “milagre”) contrastam com a fragilidade aparente de Joi, a namorada holográfica de K. Assim, o diretor mostra tanto a velha dinâmica de “mulher-suplente” — criada para satisfazer os desejos masculinos — quanto exemplos de mulheres que fogem a esse clichê, reforçando a ideia de que cada personagem feminina deve ter agência e importância próprias.

Como essas obras se diferenciam?

Enquanto a maioria dos filmes de Ficção Científica negligencia o potencial da mulher como personagem independente, eXistenZ e Blade Runner 2049 escancaram o machismo estruturante do gênero e apontam caminhos para subvertê-lo. Cronenberg utiliza a inversão de papéis de gênero para deixar claro o desconforto de um homem colocado na posição tradicionalmente feminina. Já Villeneuve coloca diversas personagens femininas em posições de poder e destaque, mostrando como o homem pode ser facilmente iludido pelas convenções e fantasias que ele próprio criou (o que acontece com K ao se deixar envolver por Joi e acreditar ser o “escolhido”).

Ambos os diretores, mesmo sendo homens, se valem dessas narrativas para criticar o que chamam de complacência da indústria e do público com a representação sexista. Eles provam que a Ficção Científica — um gênero naturalmente voltado à imaginação — possui grande potencial para mudar a forma como encaramos as relações de gênero, desde que haja coragem para repensar papéis e estereótipos.

É Possível Romper o Machismo das Ficções Científicas?

Embora a Ficção Científica geralmente reproduza visões machistas em seus universos e personagens, filmes como eXistenZ e Blade Runner 2049 mostram que é possível reverter esse quadro. Ao trabalhar o protagonismo feminino, inverter papéis de gênero e evidenciar o quanto a indústria cinematográfica tende a limitar as mulheres, essas obras quebram paradigmas e se tornam importantes referências de mudança.

Se até hoje muitos realizadores optaram por refletir o mundo “real” e manter as mulheres em papéis secundários, Cronenberg e Villeneuve demonstram que a ficção especulativa pode — e deve — ser usada para abrir novas possibilidades. Quem ganha com isso não é apenas o público feminino, mas todos que apreciam narrativas verdadeiramente audaciosas e livres de preconceitos, valorizando a força e a autonomia feminina dentro e fora das telas.

Priscilla Kinast
Priscilla Kinast
Artigos: 8

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