Gabby Petito Netflix

Crítica de Gabby Petito (Netflix) – quando a sociedade fecha os olhos para o feminicídio

O assassinato de Gabby Petito não foi um crime isolado. Ele foi o reflexo de uma sociedade que ainda romantiza relacionamentos tóxicos, ignora sinais claros de abuso e falha em proteger mulheres da violência doméstica. A série Homicídio nos EUA: Gabby Petito escancara essas questões, mas será que faz justiça à sua vítima? Ou apenas reforça uma narrativa que tantas mulheres já conhecem bem: a de um sistema que sempre chega tarde demais?

O perigo da romantização do abuso

A trajetória de Gabby Petito com seu noivo, Brian Laundrie, era vendida como um conto de fadas moderno: um casal jovem, aventureiro, explorando os Estados Unidos em uma van e documentando cada passo nas redes sociais. Mas, por trás das câmeras, a história era outra. O que parecia um relacionamento perfeito escondia um padrão clássico de abuso emocional e controle.

Um dos momentos mais angustiantes da série é a gravação da abordagem policial ao casal, dias antes do assassinato. Gabby Petito está em prantos, pedindo desculpas, enquanto Brian Laundrie, calmo e articulado, manipula a situação ao seu favor. Como tantas outras mulheres em relações abusivas, Gabby sentia-se culpada pela violência que sofria.

Esse episódio deveria ter sido o momento em que as autoridades interviessem de forma decisiva. Mas, em vez disso, o agressor recebeu um quarto de hotel, enquanto a vítima foi deixada vulnerável, entregue à própria sorte. Esse erro não é exceção: é regra. A violência contra mulheres continua sendo tratada como um “problema do casal”, e não como um crime.

A cumplicidade da família e do sistema

Se a postura da polícia já foi falha, a atitude da família de Brian Laundrie conseguiu ser ainda mais revoltante. Enquanto os pais de Gabby Petito moviam céus e terras para encontrar a filha, os de Laundrie se fechavam em silêncio. Esse tipo de cumplicidade não é novo. Homens violentos muitas vezes crescem em ambientes onde são protegidos, onde seus erros são minimizados e onde o machismo os ensina que eles têm o direito de controlar suas parceiras.

A série mostra como a família Laundrie agiu de forma calculada para proteger Brian. Desde o momento do desaparecimento de Gabby até a fuga do filho, suas ações levantam questões sobre até que ponto uma família pode ir para acobertar um crime.

A situação piora ao analisarmos o papel das autoridades. Quando Brian voltou para casa sem Gabby, em um carro que pertencia a ela, isso já deveria ter sido o suficiente para uma investigação mais rigorosa. Mas, mais uma vez, um homem branco e de classe média foi tratado com leniência. Ele teve tempo de escapar, e o pior aconteceu.

O impacto da mídia e o apagamento de outras vítimas

O caso de Gabby Petito recebeu enorme atenção midiática, e a série tenta capturar essa dimensão. Mas há uma questão incômoda: quantas outras mulheres desaparecem diariamente sem que sequer recebam uma menção nos jornais? Mulheres negras, indígenas e latinas raramente despertam o mesmo clamor público. Isso tem um nome: síndrome da mulher branca desaparecida. A sociedade parece se mobilizar mais quando a vítima se encaixa em um padrão idealizado de fragilidade.

Ao longo da série, há momentos em que essa questão é mencionada, mas não com a profundidade necessária. Se o caso de Gabby Petito teve um desfecho trágico, ele ao menos serviu para dar visibilidade ao problema. Mas quantas mulheres continuam desaparecendo, sem que seus nomes sequer sejam lembrados?

Reflexões finais: o que a história de Gabby Petito nos ensina?

No fim, a série Homicídio nos EUA: Gabby Petito consegue ser um retrato fiel da tragédia que ocorreu, mas falha ao aprofundar o verdadeiro problema: a cultura de violência contra mulheres. O feminicídio de Gabby Petito não foi um incidente isolado. Ele foi o resultado de um ciclo de abusos que começou muito antes e que poderia ter sido interrompido.

O que aprendemos com essa história? Que sinais de abuso não podem ser ignorados. Que a polícia precisa ser treinada para reconhecer violência doméstica. Que famílias que protegem agressores são cúmplices. E que a mídia precisa dar atenção a todas as vítimas, não apenas àquelas que se encaixam em um perfil específico.

O maior erro dessa série não está em sua produção ou narrativa, mas no fato de que sua história não é exceção. Enquanto mulheres continuarem sendo silenciadas, mortas e ignoradas, novas Gabby Petitos surgirão — e, tragicamente, novas séries como essa continuarão a ser feitas.

Priscilla Kinast
Priscilla Kinast
Artigos: 13

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